sábado, 18 de novembro de 2017

O martírio dos jogadores abandonados com problemas de saúde


Clubes descartam atletas acometidos por doenças crônicas, lesões graves e acidentes de trabalho

Kauê Siqueira dirigia no caminho que liga São Paulo a Penápolis quando perdeu o controle da direção e capotou o carro no canteiro central da estrada. Ele foi levado para um hospital público de Bauru, onde entrou em coma por causa de um trauma na cabeça. O acidente ocorreu em 10 de junho de 2013, duas semanas depois de o meia, então com 21 anos, firmar contrato com o Penapolense para a disputa da quarta divisão do Campeonato Brasileiro. Durante a recuperação de uma neurocirurgia, que paralisou todo o lado esquerdo de seu corpo, o jogador foi escanteado pelo clube. “Me desrespeitaram como ser humano”, diz Kauê, que passou a engrossar a lista de atletas desamparados no futebol, um panorama que mistura contratos questionados, regras pouco claras e times insolventes.
Kauê sofreu acidente de carro e foi desprezado pelo clube.
Kauê sofreu acidente de carro e foi desprezado pelo clube. EL PAÍS
Visto como um talento potencial, ele foi revelado pelo Santo André e, em 2011, teve 50% de seus direitos econômicos adquiridos pelo grupo DIS, em transação semelhante à de Neymar – que resultou em um imbróglio jurídico devido à suspeita de evasão de valores na transferência do atacante para o Barcelona. Com passagens por Corinthians e Internacional, o meia chegaria ao Penapolense dois anos depois, parte de um acordo do DIS para fornecer atletas ao clube. Após o acidente, tanto o time de Penápolis quanto o DIS se recusaram a pagar o tratamento do jogador, que ficou 26 dias internado pelo SUS.
Assim que recebeu alta, ele voltou para São Paulo, onde vivia com a família, e iniciou uma série de exames na Santa Casa. Foram detectadas sequelas que impossibilitavam seu retorno ao futebol. Contudo, o Penapolense reintegrou o jogador quando ele deixou de receber o auxílio-doença do INSS e o deixou treinando sozinho, separado do elenco principal e sem receber salário. Por causa das limitações físicas, mal conseguia chutar uma bola. Nesse período, o meia recorreu à ajuda de parentes e ao que restava de suas economias para custear o tratamento particular de fisioterapia e o sustento da filha de 4 anos.
Sem condições físicas para voltar a jogar, Kauê decidiu abreviar a carreira aos 22 anos e entrou na Justiça contra o clube cobrando indenização por acidente de trabalho – ele se dirigia ao centro de treinamentos ao capotar o carro –, ressarcimento das despesas médicas e o pagamento de férias e 13º salário. “Se o clube tivesse prestado assistência desde o início, eu poderia estar jogando novamente”, afirma o meia, que hoje tem 25 anos e ainda sonha com a reabilitação para retomar o ofício nos gramados. A Justiça lhe deu ganho de causa em primeira instância. Sua defesa tenta incluir o DIS como corresponsável pela dívida. O grupo bancava a maior parte do salário do atleta e havia estipulado uma multa de 1 milhão de reais caso ele rescindisse o contrato com a empresa.
Enquanto aguarda julgamento de seu recurso, o Penapolense, que nega ter cometido qualquer irregularidade com o jogador, enfrenta outros dois processos parecidos. Os zagueiros William e Daniel Miller também acusam o clube de abandono e descumprimento de direitos trabalhistas. O primeiro sofreu uma pancada na cabeça durante um amistoso contra o Londrina, no Paraná, e ficou internado no hospital municipal da cidade sem nenhum auxílio da delegação, que voltou para Penápolis após o jogo. Já Miller foi dispensado depois de sete cirurgias no joelho, que o obrigaram a encerrar a carreira aos 24 anos. De acordo com André Garcia, gerente de futebol do Penapolense, o clube cumpriu as obrigações com os atletas, mas pretende respeitar a decisão judicial em todos os casos. O grupo DIS, que também detinha parte dos direitos econômicos de William, afirma que atuava apenas como investidor dos atletas e que, portanto, não se responsabiliza por custos empregatícios.

Profissão de risco

Os irmãos Filipe e Thiago Rino se especializaram em causas trabalhistas no direito esportivo. A cada mês, o escritório dos advogados protocola cerca de 100 processos em nome de jogadores na Justiça. A maior parte deles coincide com o fim dos campeonatos estaduais, em que clubes pequenos, com baixo orçamento, muitas vezes não conseguem honrar seus compromissos e dão calote em milhares de atletas pelo país. Em São Paulo, de acordo com o Sindicato de Atletas, foram quase 500 processos trabalhistas nos últimos dois anos. Aproximadamente 40% das ações se referem à saúde dos trabalhadores da bola que acabam negligenciados pelos clubes. “Abandonar jogadores lesionados e doentes à própria sorte virou uma praxe dos dirigentes. A maioria dos clubes se preocupa apenas com o resultado, e não com o lado humano de seus empregados”, afirma Thiago Rino, que representa Kauê, William e Daniel nas ações contra o Penapolense.
Irmãos Rino: uma centena de processos trabalhistas por mês contra clubes de futebol.ampliar foto
Irmãos Rino: uma centena de processos trabalhistas por mês contra clubes de futebol.
Em casos de enfermidade ou lesão, os departamentos jurídicos dos clubes costumam dizer que o jogador já apresentava uma condição preexistente para justificar o rompimento do vínculo. Entretanto, para Filipe Rino, essa argumentação não se sustenta nos tribunais. “Todo contrato entre clube e atleta tem a assinatura de um médico, que é o responsável por liberá-lo para a prática esportiva. A partir do momento em que o compromisso é firmado, não há como atribuir eventuais problemas de saúde ou lesões a um período anterior ao registro do contrato”, explica o advogado.
Henrique Choco descobriu uma arritmia cardíaca durante o exame admissional no CSA, de Alagoas. Ainda assim, o clube decidiu contratar o volante. Ele afirma ter passado por procedimentos de cardioversão, que consiste em choques elétricos no coração, antes de algumas partidas. Uma das sessões teria acontecido na véspera da final do Campeonato Alagoano, contra o CRB. Todavia continuava sentindo falta de ar e tontura em campo. Ao fim do torneio, Choco fez uma cirurgia cardiovascular, mas o clube o dispensou um mês depois da operação.
O antigo capitão do time conta que havia assinado um novo contrato com o CSA até novembro de 2016, que só não foi registrado por conta de seu estado de saúde. “O presidente [Rafael Tenório], que me chamava de ‘filho’, comparou minha situação à do Serginho [zagueiro que morreu após uma parada cardíaca durante o confronto entre São Caetano e São Paulo, em 2004]. Ele disse que seria arriscado me manter no clube e falou para eu procurar outra coisa pra fazer”, diz o volante de 27 anos, que desde então não jogou mais futebol. Rafael Tenório, mandatário do CSA, que se defende de uma ação trabalhista, nega ter submetido o jogador a choques elétricos e argumenta que o contrato dele havia terminado. “Agimos de forma correta com o Choco. Vamos provar que essa reclamação não tem fundamento.”
Lucas Patrick encerrou a carreira após cirurgia malsucedida.
Lucas Patrick encerrou a carreira após cirurgia malsucedida. 
Condições precárias de trabalhotambém colocam jogadores em risco. Somente este ano, sindicatos de atletas e Ministério Público do Trabalho já registraram mais de 50 queixas por maus tratos em clubes de futebol. Em março, o elenco do União Barbarense foi obrigado a percorrer 240 quilômetros de ônibus no mesmo dia da partida contra o Batatais pela segunda divisão paulista. Jogadores viajaram deitados no assoalho do ônibus na tentativa de poupar as pernas para o jogo. O clube terminou o campeonato na última colocação e com pelo menos sete processos por atrasos de salário, incluindo o técnico Edson Leivinha, que comandou a equipe em três partidas. No início do ano, a Justiça do Trabalho de Santa Bárbara d’Oeste determinou a penhora do estádio do União por dívidas superiores a 8 milhões de reais com atletas que defenderam o clube nos últimos cinco anos.
Um deles é o ex-zagueiro Marcos Aurélio. Em 2014, ele foi dispensado do União após sofrer uma lesão no nervo fibular da perna direita, que comprometeu 75% dos movimentos do pé. Depois de ganhar a ação na Justiça, ele se tornou, aos 36 anos, o primeiro jogador do Brasil a ter direito a uma pensão vitalícia por invalidez. Na decisão judicial, o clube foi obrigado a pagar um montante superior a 1 milhão de reais de uma só vez ao atleta. Porém, mesmo quando favorecidos por sentenças trabalhistas, jogadores são reféns da penúria financeira dos clubes que sequer conseguem arcar com as despesas do dia a dia.
Em abril, o zagueiro Sanny, do Central de Caruaru, afirmou que os atletas haviam ficado mais de seis horas sem alimentação antes de entrar em campo contra o Náutico, pelo Campeonato Pernambucano. O time, que perdeu por 5 x 0, afastou o defensor após a denúncia. Na última semana foi a vez do técnico Álvaro Gaia reclamar da estrutura do clube por alojar jogadores que dormiam no chão. Em 2013, um atacante do América, de Sergipe, desmaiou de fome diante do Confiança. O clube não tinha dinheiro para pagar o jantar do elenco.

Descaso como regra

Silas Brindeiro fez fama como goleador no interior de São Paulo. Depois de defender Mogi Mirim e Guarani, ele sagrou-se artilheiro do Capivariano na campanha do título da segunda divisão paulista, em 2014. No entanto, quando se preparava para disputar a Série A1 no ano seguinte, o centroavante foi diagnosticado com leucemia e teve de interromper o auge nos gramados para tratar do câncer. Apesar de enfrentar três quimioterapias em dois anos, a doença não regrediu. O contrato com o Capivariano venceu em abril de 2016. Os custos do tratamento saem de seu bolso.
Silas em ação pelo Capivariano, em 2013.
Silas em ação pelo Capivariano, em 2013. 
Aos 29 anos, Silas passou o último 1º de maio internado no CTI de um hospital em Brasília. Antes de voltar para o leito, com seu estado agravado por uma pneumonia, o ex-goleador lamentava a falta de suporte do time onde virou ídolo. “Quando eu mais precisei, o clube me deixou na mão”, afirmou. Ele processou o Capivariano por falta de pagamentos durante o período em que esteve afastado pelo INSS.
Um problema comum à maioria dos 28.000 jogadores profissionais registrados na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). De um lado, 80% deles ganham até 1.000 reais por mês, boa parte sem carteira assinada, o que dificulta o acesso a benefícios como seguro-desemprego e fundo de garantia. Do outro, a minoria que recebe mais de 1.000 reais, valores que, em muitos casos, são diluídos em direitos de imagem – um truque dos clubes para reduzir encargos trabalhistas. A artimanha é sentida pelos jogadores no momento em que precisam recorrer ao INSS, que leva em conta as contribuições previdenciárias com base no salário em carteira e estabelece um teto de 5.531 reais para o pagamento de benefícios como o auxílio-doença.

O QUE DIZ A LEI PELÉ

Art. 45. As entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos.
§ 1º A importância segurada deve garantir ao atleta profissional, ou ao beneficiário por ele indicado no contrato de seguro, o direito a indenização mínima correspondente ao valor anual da remuneração pactuada.
§ 2º A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo.
Raramente os clubes arcam com a diferença entre o salário integral, incluindo direitos de imagem, e o benefício da Previdência ao longo do afastamento de um atleta. Kauê Siqueira, o atleta que sofreu um acidente de carro, por exemplo, recebia 1.500 reais em carteira do Penapolense e 3.500 reais por fora, pagos pelo grupo DIS. Já Silas Brindeiro viu sua remuneração mensal despencar de 10.000 para 4.000 reais com o auxílio-saúde, pois boa parte dos rendimentos no Capivariano estava atrelada aos direitos de imagem. Por não se tratar de acidente de trabalho, a doença do atacante não lhe garantiu o direito à estabilidade provisória de 12 meses no emprego, como a legislação determina para evitar que o trabalhador seja demitido após retornar do período de licença médica. O projeto de lei 166/2016 que tramita no Senado quer estender o benefício a todos os portadores de câncer no país, mas ainda aguarda para ser votado em plenário.
Mesmo em casos de acidente de trabalho, há clubes que ignoram o direito à estabilidade. Em 2015, o Tupi, de Juiz de Fora, foi condenado a pagar indenização ao meia Hugo Imbelloni, dispensado depois de uma cirurgia no joelho esquerdo. Como o clube não emitiu o CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), algo corriqueiro em equipes que não assinam a carteira de trabalho de seus atletas, o jogador sequer conseguiu usufruir do auxílio-doença. Pelo mesmo motivo, o lateral Formiga também processou o Tupi no fim do ano passado. Ele ainda reivindica indenização pelo fato de o clube não ter contratado o seguro obrigatório de acidentes pessoais, previsto no artigo 45 da Lei Pelé.
Sem receber seguro do clube, Silas tem de bancar sozinho o tratamento contra o câncer.
Sem receber seguro do clube, Silas tem de bancar sozinho o tratamento contra o câncer.
“Poucos clubes, mesmo entre os de primeira divisão, se previnem com o seguro para os atletas”, afirma o advogado Thiago Rino. Reconhecendo isso, a CBF fechou acordo com uma seguradora para garantir o benefício equivalente a 13 salários a todos os atletas com contratos ativos no sistema de registro. Porém, a apólice oferece cobertura apenas por morte ou invalidez e só entrou em vigor em março de 2016. Desassistidos, jogadores que amargam lesões e sequelas de trabalho têm de recorrer à Justiça e podem levar mais de uma década para receber dos clubes.
Exceções confirmam a regra. Um erro médico na correção de uma fratura na perna direita forçou Lucas Patrick a abortar a carreira com apenas 20 anos. O Grêmio Osasco não oferecia o seguro, mas, após uma ação judicial, o clube rapidamente chegou a um acordo para indenizar o jogador. Na maioria dos casos, entretanto, incapacitados para a atividade futebolística como Kauê, Choco e Silas precisam se desdobrar entre a batalha nos tribunais pela indenização do seguro e os custos elevados do tratamento médico. Silas Brindeiro, o ex-goleador do Capivariano, que só se pronuncia sobre o tema na Justiça, ainda busca um doador compatível de medula óssea. Parado há dois anos, o atacante já gastou mais de 15.000 reais em exames não cobertos pelo plano de saúde. Neste momento, ele alimenta a esperança de um dia voltar a jogar lutando por seus direitos e, acima de tudo, pela vida.

JOGADORES DE CLUBES TRADICIONAIS TAMBÉM SOFREM

Habitual em equipes menores, a indiferença com atletas que peregrinam no estaleiro também atinge o alto escalão da bola. O caso mais emblemático é o de Everton Costa, que parou de jogar em 2014 depois de passar mal em uma partida pelo Vasco. Com uma anomalia cardíaca, ele anunciou a aposentadoria aos 29 anos e precisou cobrar direitos trabalhistas tanto da equipe vascaína quanto de seus ex-clubes, Coritiba e Santos – de quem ganhou uma indenização de 350.000 reais. Seu empresário ainda acusou o time santista de negligência. Médicos do Peixe teriam deixado de informar o jogador sobre alterações detectadas no exame admissional. O clube alegou que os resultados não impediam o atleta de seguir praticando futebol. Em situação semelhante, o Cruzeiro foi condenado a desembolsar 1,3 milhão de reais ao volante Diogo Mucuri por não ter garantido o seguro ao atleta, que encerrou a carreira em 2006 por causa de um infarto.
Em 2014, a Justiça do Trabalho condenou o Ceará a pagar indenização ao zagueiro Thiago Geraldo, demitido após uma lesão no joelho. Já este ano, o volante Sandro Silva, com passagens por Vasco e Palmeiras, disputou apenas sete jogos pela Portuguesa até romper os ligamentos do tornozelo. Ele foi dispensado sem tratamento adequado e exige do clube ao menos o pagamento da cirurgia, avaliada em 45.000 reais.
    fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/09/deportes/1494286365_866981.html

Reforma da legislação esportiva ameaça direitos de crianças no futebol

Projeto que baixa idade mínima para contratação de atletas é encampada por relator da reforma trabalhista. Vedada pelo ECA, mudança pode levar o Brasil a ser denunciado à Corte Interamericana

Contrato futebol 12 anosAmpliar foto
Clubes querem assinar contrato com atletas a partir de 12 anos.  SANTOS FC
Depois de encaminhar as reformas trabalhista e da Previdência, a Câmara dos Deputados também pretende aprovar mudanças profundas nas leis que regem o esporte nacional. O pacote prevê, além da criação de novas normas, a reformulação do Estatuto do Torcedor e da Lei Pelé, aprovada em 1998. Mas o ponto mais controverso da reforma diz respeito à formação de atletas, mais especificamente no futebol. O relatório do projeto apresentado em março, assinado pelos deputados Andrés Sanchez (PT) e Rogério Marinho (PSDB), mesmo relator da reforma trabalhista, propõe a redução da idade mínima para clubes contratarem jogadores de 14 para 12 anos.
Entidades nacionais, como o Ministério Público do Trabalho(MPT) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e internacionais, a exemplo de UNICEF e Organização Internacional do Trabalho (OIT), avaliam que a proposta é inconstitucional por ferir direitos da criança e do adolescente. A legislação brasileira só admite relações formais de trabalho a partir de 14 anos, em caráter de aprendizagem até o jovem completar 16 anos. Em fevereiro, a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do MPT enviou um ofício ao relator do projeto, Rogério Marinho, alertando sobre a ameaça que a medida representa às garantias infantojuvenis previstas na Constituição. O órgão entende que, ao estabelecerem vínculo com atletas com menos de 14 anos, os clubes configurariam uma relação de trabalho vedada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o que pode levar o Brasil a ser denunciado ao Comitê para os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O projeto aguarda aprovação na comissão especial de reforma da legislação esportiva e, de acordo com membros do grupo, deve ser levado a votação no plenário da Câmara ainda neste semestre. A mudança na idade mínima atende a um antigo desejo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Desde o fim da Copa do Mundo, em 2014, a entidade se esforça para derrubar o veto a menores de 14 anos em categorias de base, como uma resposta ao fracasso da seleção que levou 7 x 1 da Alemanha. Primeiro, a CBF tentou empurrar a proposta dentro da Medida Provisória 671, que refinanciou as dívidas dos clubes com a União, mas o artigo foi vetado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Agora, a confederação aposta no lobby da “bancada da bola”, composta por parlamentares alinhados a seus interesses no Congresso Nacional, para aprovar o projeto liderado por dois ex-cartolas. O presidente da comissão especial, Andrés Sanchez, foi o mandachuva do Corinthians por quatro anos, enquanto o relator Rogério Marinho comandou o departamento de futebol do ABC, de Natal, até 2015.
O modelo de formação de jogadores dos algozes brasileiros na Copa é usado como argumento para sustentar a proposta. Então coordenador das categorias de base da seleção brasileira, Alexandre Gallo defendeu que era necessário iniciar mais cedo o trabalho com jovens atletas, tal qual a metodologia alemã. Em 2000, a Federação Alemã de Futebol (DFB) lançou um amplo processo de estruturação das categorias de base. Foram investidos mais de 1 bilhão de dólares na construção e modernização de centros de treinamentos, que recebem crianças a partir dos 9 anos, porém em condições especiais. Até os 15 anos, os garotos não podem treinar mais que oito horas por semana e passam por um rígido acompanhamento escolar. A maioria dos clubes só assina contrato com atletas com mais de 14 anos. A proposta de reforma da legislação brasileira divide a formação de jogadores em três etapas: fundamentos (12 a 14 anos), desenvolvimento (14 a 16 anos) e aperfeiçoamento (16 a 19 anos). Na primeira delas, a carga de jogos e treinamentos poderia chegar a 21 horas semanais, o que, para o MPT, configuraria a relação de trabalho.
Legislação atual não impede que clubes mantenham jovens com menos de 14 anos em categorias de base, mas veta a assinatura de contrato com jogadores dessa faixa etária.
Legislação atual não impede que clubes mantenham jovens com menos de 14 anos em categorias de base, mas veta a assinatura de contrato com jogadores dessa faixa etária.  CRVG
Já para Rogério Marinho, a proposta não viola a Constituição. “Sabemos que é proibida a contratação antes dos 14 anos, mas a proposta não estabelece vínculo empregatício entre clube e atleta. Queremos apenas regular as condições para a prática do futebol nos clubes antes dessa idade”, afirma. A procuradora do Ministério Público do Trabalho, Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, que assina o ofício enviado ao relator, discorda dessa interpretação. “O futebol é lúdico apenas para o torcedor. No contexto de alto rendimento dos clubes, os jovens estão inseridos em um negócio. Ao mesmo tempo em que pretendem desnaturalizar as relações trabalhistas antes dos 14 anos, os clubes não abrem mão dos direitos econômicos do atleta, visam lucro com um vínculo que, mesmo não sendo empregatício, é de trabalho. Que lição é essa que o Brasil aprendeu depois da Copa? A incompetência da CBF e dos clubes na formação de atletas não pode ser pretexto para atentar contra direitos de crianças e adolescentes.”
Alexandre Gallo, mentor da proposta de redução da idade, foi demitido em maio de 2015 após dois anos no cargo. A comissão que sucedeu sua gestão na base da CBF, encabeçada por Erasmo Damiani e Rogério Micale, durou menos tempo ainda e acabou dissolvida em fevereiro deste ano. A falta de continuidade em planos de formação de talentos na seleção se reflete nos clubes, que mudam constantemente a política de investimento na revelação de jogadores. Um gargalo reconhecido até mesmo por parlamentares que apoiam a reforma da legislação esportiva. “Temos de ser realistas. Se o problema da base fosse a iniciação aos 14 anos, seria fácil resolver, mas tem muita coisa além disso”, diz Andrés Sanchez. “Os departamentos de formação ainda dão prejuízo aos clubes e a maioria ainda não oferece estrutura para revelar atletas.”

Driblando a lei

Desde 2007, o Ministério Público do Trabalho conta com uma comissão do atleta, responsável por apurar irregularidades trabalhistas no esporte e prevenir o trabalho infantil em categorias de base. Dezenas de clubes, incluindo grandes como Atlético-MG, Cruzeiro, Grêmio, Internacional, Santos e Vasco, já foram notificados por alojar atletas de outros Estados com menos de 14 anos, afastando-os do convívio familiar, ou por não apresentar condições adequadas para acolher crianças e adolescentes. Eles tiveram de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e readequar suas categorias de base às determinações da Lei Pelé e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Heraldo Panhoca, advogado e um dos idealizadores da Lei Pelé

“Baixar a idade de iniciação em categorias de base seria um grande retrocesso. Em vez de obrigar o sistema esportivo a se organizar melhor, preferem agir de modo simplista e tirar direitos de crianças e adolescentes.”
Ainda assim, muitas equipes seguem desrespeitando a lei ao recrutar novos talentos. A situação é ainda mais delicada em clubes pequenos, que, diante da falta de recursos, acabam cedendo a administração das categorias de base a agentes e investidores. Em 2014, por exemplo, o MPT proibiu o Sertãozinho F. C., do interior paulista, de terceirizar a formação de atletas, já que jogadores com menos de 17 anos treinavam fora do clube sob a tutela de um empresário e não tinham contrato assinado com o clube. Caso a reforma da legislação esportiva avance no Congresso Nacional, o MPT teme a abertura de um precedente para outras flexibilizações que coloquem em risco crianças e adolescentes, como a terceirização de categorias de base, o aumento da carga de treinos e a redução ainda maior do limite de idade. “Há uma lógica de desregulamentação do trabalho em curso no Congresso que testa os limites da sociedade. A proposta da reforma esportiva suaviza mecanismos de proteção a crianças e adolescentes garantidos pela Constituição e tratados internacionais. Temos o receio de que os clubes passem a cooptar atletas cada vez mais jovens e a assimilar o trabalho infantil como algo normal”, afirma Sbalqueiro Lopes.
A profissionalização precoce não representa a única objeção à proposta. Especialistas em direitos infantojuvenis avaliam que crianças e adolescentes com menos de 16 anos não deveriam ser submetidas ao constrangimento da seletividade, à hipercompetitividade e aos esforços físicos exigidos em categorias de base. “No futebol profissional impera a cultura da busca incessante por vitórias”, diz Ana Christina Brito Lopes, doutora em sociologia e especialista em direitos da infância no esporte. “Quem não consegue resultado é descartado. Precisamos entender que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e não devem ficar expostos precocemente aos riscos, sobretudo à saúde, que esse ambiente oferece.” Heraldo Panhoca, advogado especializado em direito esportivo e do trabalho que ajudou na elaboração da Lei Pelé e do Estatuto do Torcedor, é ainda mais enfático. “Concordar com a iniciação em esporte de alto rendimento antes dos 14 anos, sem nenhuma base científica para isso, significa promover a mutilação de pessoas. Quanto mais cedo um atleta começa em uma modalidade, mais as chances de se tornar um adulto com sequelas físicas e psicológicas.”

Fuga de talentos

Outro argumento dos clubes para defender a redução do limite de idade é o assédio de clubes estrangeiros às promessas que despontam nos gramados brasileiros. “A exportação prematura dos nossos talentos é um grave problema. E, como antes de 14 anos eles não podem ter vínculo com os clubes, não conseguimos mantê-los no Brasil”, afirma Walter Feldman, secretário-geral da CBF. Desde 2012, a confederação adota o Certificado de Clube Formador, um selo concedido a equipes que preenchem requisitos mínimos para a manutenção de categorias de base, como atendimento médico e odontológico. O certificado confere amparo jurídico aos clubes para fechar contrato com atletas a partir de 14 anos e garantir um percentual de seus direitos econômicos em futuras negociações. Dirigentes alegam que, por não poderem estabelecer esse tipo de vínculo com atletas mais novos, perdem suas revelações para times de fora ou até mesmo concorrentes nacionais. “Os clubes investem alto na base, mas estão desprotegidos pela legislação”, diz João Paulo Sampaio, que coordena os trabalhos de formação no Palmeiras.
Equipe sub-11 do Palmeiras em partida contra o Guarani.
Equipe sub-11 do Palmeiras em partida contra o Guarani.  DIVULGAÇÃO
Um dos casos recentes é o de Manu, garoto de 10 anos que treinava na escolinha do Grêmio, mas mudou-se para a Espanha após um período de testes no Barcelona, sem nenhuma compensação financeira ao time gaúcho. Como forma de coibir o tráfico de crianças, o regulamento da Fifaproíbe transferências internacionais de jogadores com menos de 18 anos. No entanto, clubes buscam brechas para driblar o veto, como oferecer emprego aos pais do atleta e promover a mudança da família para outro país. Essa é a suspeita do Grêmio em relação à saída de Manu. O clube deve denunciar o Barcelona à Fifa por aliciamento.
Para opositores à redução do limite de idade, o problema não está na legislação esportiva brasileira, mas sim no regulamento da Fifa, que só permite aos clubes assinar contrato de no máximo três anos com menores de 18. A Lei Pelé admite acordos de até cinco anos com maiores de 16 para resguardar os clubes diante das investidas internacionais. “As normas da Fifa precisam estar em consonância com as leis do nosso país, não o contrário”, afirma Heraldo Panhoca. “Baixar a idade de iniciação em categorias de base seria um grande retrocesso. Em vez de obrigar o sistema esportivo a se organizar melhor, preferem agir de modo simplista e tirar direitos de crianças e adolescentes.”
Até o momento, a comissão especial da Câmara dos Deputados ainda não deu retorno ao ofício do Ministério Público do Trabalho. A reforma apresentada para votação vai de encontro às propostas da Lei Geral do Esporte, que visa unificar a Lei Pelé e o Estatuto do Torcedor e tramita desde março como projeto de lei no Senado. O relatório final, elaborado por um grupo de 13 juristas especializados em direito esportivo e aprovado no fim do ano passado, prevê que “a organização esportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho esportivo, cujo prazo não poderá ser superior a três anos para a prática do futebol e a cinco anos para outros esportes”.

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