O fortalecimento de uma classe: o caso da greve do futebol argentino em 1948
Eduardo de Souza Gomes
Em 2013, nos deparamos com o surgimento de um movimento de atletas no futebol brasileiro, que idealizava melhorias para esse esporte no país. Trata-se do Bom Senso Futebol Clube [1]. Popularmente chamado apenas de “Bom Senso”, o movimento foi construído a partir da união de atletas de diversos clubes do Brasil. Entre suas principais reivindicações, podemos citar o ajuste do calendário anual do futebol nacional [2] e o Fair Play financeiro [3].
Algumas das manifestações do Bom Senso contra a atual organização do futebol brasileiro, foram realizadas ainda no Campeonato Brasileiro de 2013. Em diferentes rodadas, os atletas das equipes da Série A do Brasileirão ficaram sentados ou parados de braços cruzados no gramado por alguns segundos, para só depois iniciarem as partidas [4].
Atletas ligados ao movimento chegaram, inclusive, a cogitar a realização de uma greve, algo que não ocorreu, entre outros motivos, pelo fato do movimento não ser bem visto pelo Sindicato dos Atletas, que é o órgão que poderia organizar legalmente uma parada dos profissionais da área. Como afirma Alex, ex-jogador e um dos líderes do movimento Bom Senso F. C.
“Nossa grande briga foi a não participação do sindicato, porque ele sempre nos olhou como uma linha paralela, o que não é verdade. Sempre tentamos trabalhar junto com o sindicato. A única coisa que o jogador de futebol poderia fazer era uma greve, mas, para isso, precisamos do sindicato [5].”
Todavia, se a greve vier a ocorrer em algum momento, não será a primeira vez que se concretiza algo semelhante na história do futebol. E, neste texto, abordaremos um pouco de como se deu uma das maiores greves de futebolistas já registradas na América do Sul. Trata-se da greve de jogadores de futebol na Argentina, ocorrida em 1948.
O futebol argentino se profissionalizou oficialmente em 1931, apesar do amadorismo marrom que já existia anteriormente. Em um movimento marcado por manifestações e tensões em seu processo, onde os atletas buscavam maior autonomia no controle de seus passes, ocorreram paralisações no futebol do país que resultaram na formação do primeiro campeonato nacional profissional nesse mesmo ano.
Na década seguinte, o futebol argentino viveu um dos seus grandes auges na história. Marcado pela formação de grandes equipes no âmbito dos clubes, com destaque para “La Maquina” do River Plate, esse sucesso refletiu no selecionado nacional, que em dez anos (1937-1947) alcançou a conquista de cinco dos sete Campeonatos Sul-Americanos de seleções (atual Copa América) disputados no período. A seleção argentina era apontada como uma das grandes favoritas para a Copa do Mundo de 1950, que ocorreria no Brasil e seria a primeira edição da competição após o conflito da Segunda Guerra Mundial [6]. Jogadores como Di Stéfano, Pedernera, Labruna, entre outros, marcavam o cenário do futebol argentino nos anos 1940.
Porém, esse cenário se modificaria em 1948. Desde 1944, os jogadores de futebol profissional no país já haviam criado um sindicato para representar a categoria, o FAA – Sindicato de Futebolistas Argentinos e Agremiados. A partir de então, esse sindicato passou a ser a maior voz dos atletas de futebol na Argentina e teve, como alguns de seus principais líderes, importantes nomes desse esporte no período, como o goleiro Fernando Bello do Independiente e o ídolo Adolfo Pedernera, que se tornaram presidente e vice-presidente do sindicato, respectivamente (DRUMOND, 2008, p. 71 e 72).
Em 1948, uma série de insatisfações em relação ao cenário do futebol argentino, fez com que boa parte dos atletas que atuavam no país profissionalmente optassem por entrar em greve. Os grevistas buscavam, entre outros motivos, a criação de um seguro de previsão social para os jogadores, o repasse de parte da renda dos jogos para os atletas e a criação de um salário mínimo (DRUMOND, 2008, p. 72). O movimento, que se iniciou em novembro de 1948 e se encerrou em maio de 1949, também lutava contra o piso salarial que o governo de Juan Perón buscou estabelecer nesse período.
O brasileiro Yeso Amalfi, jogador de futebol que no período da greve atuava pelo Boca Juniors, de Buenos Aires, destaca em sua autobiografia [7] que teria sido o desleixo de membros da AFA [8] e do governo de Juan Perón, ao não cumprirem as exigências da FAA, que teriam ocasionado a greve. Destaca ainda o jogador, que os atletas haviam iniciado a greve a partir do chamado Paro simbólico (AMALFI, 2009, p. 37), que consistia em todos, após o apito inicial dos jogos, ficarem um minuto em silêncio e sentados em campo como protesto, para só depois atuarem os 89 minutos restantes (algo muito próximo das manifestações organizadas pelo Bom Senso F. C. em 2013 no futebol brasileiro, citadas no início desse trabalho). Esse ato, analisado como uma forma de resistência contra a AFA e o regime de Perón, resultou na greve, que fez com que o campeonato argentino daquele ano se encerrasse com muitas equipes atuando com seus jogadores reservas ou das categorias de base.
Em sua autobiografia, intitulada Gracias, vieja! (2000), Alfredo Di Stéfano, um dos craques da equipe do River Plate de 1948, afirma que a greve foi também uma maneira de lutar por melhorias nas condições de trabalho dos atletas de equipes pequenas. Destaca ainda, que muitas equipes menores contratavam jogadores e, posteriormente, não honravam seus compromissos financeiros e profissionais. Com a ausência de pagamentos, muitos desses jogadores teriam que buscar outras formas de renda para manter o sustento familiar, o que não era aceitável em um país onde o futebol já era profissional desde 1931.
Como principal consequência imediata, a greve gerou o enfraquecimento do campeonato nacional daquele ano. Além do fato de várias equipes terem concluído a competição atuando com jogadores das categorias de base ou amadores, tendo em vista que os atletas principais haviam aderido ao movimento grevista, o Racing, um dos favoritos ao título, optou por não atuar nas rodadas finais [9]. Por fim, o Independiente acabou sendo o campeão, em uma edição da competição em que o título em si havia sido ofuscado pela grande organização e mobilização dos atletas em questão.
Em maio do ano seguinte, a greve se encerrou e os jogadores alcançaram boa parte das reivindicações desejadas no ano anterior. Todavia, algumas medidas contestadas pelos atletas, como a efetivação de um teto salarial, foram mantidas. Nesse cenário, já havia se tornado tarde demais para a resolução de todos os problemas que o processo ocasionou ao futebol argentino.
Como boa parte dos atletas estavam sem atuar pelo campeonato nacional e sem poder buscar uma transferência, já que a Lei do Passe [10] não permitia uma transferência legal para outro clube, os jogadores não poderiam ir atuar em times de outras importantes federações espalhadas pela América Latina e Europa. Porém, foi nesse momento que um país vizinho apareceu como opção para os atletas argentinos: a Colômbia.
Paralelamente ao processo de greve do futebol argentino, se fortalecia em terras colombianas uma liga de futebol profissional autônoma e que, a partir de março de 1949, não se encontrava filiada às federações internacionais do futebol, como a FIFA e a Conmebol. Com isso, os clubes colombianos passaram a investir em altos salários para a contratação de diversos atletas estrangeiros que pudessem fortalecer seu campeonato profissional, sem, entretanto, se preocuparem com o pagamento de seus passes aos clubes de origem. Se iniciava assim o período El Dorado do futebol colombiano. Já abordamos essa temática em outros trabalhos mais específicos sobre o futebol na Colômbia [11], assim como foi recentemente explicitado no blog História(s) do Sport, a partir do texto assinado por David Quitián [12].
Com esse contexto, marcado pela formação da liga profissional colombiana e a greve dos atletas argentinos, ocorreu o casamento perfeito entre os dois lados. Muitos argentinos já atuavam no futebol colombiano, mas é a partir de 1949 que ocorreu um aumento considerável do êxodo de atletas portenhos para o país. O primeiro nome de impacto foi o de Pedernera, seguido de outros atletas de destaque, como Di Stéfano, Nestor Rossi, Rial, entre outros grandes jogadores. Com uma base de atletas argentinos, a equipe do Millonarios, da capital Bogotá, formou um grande esquadrão e venceu quatro dos cinco campeonatos colombianos disputados entre 1949 e 1953 (GOMES, 2014, p. 89).
Com a saída de seus principais jogadores, somada a outros problemas estruturais internos, a Argentina acabou não disputando a Copa de 1950, em que era apontada como uma das principais favoritas. Só voltaria a disputar novamente um mundial em 1958, na Suécia. Assim, podemos perceber que a greve trouxe consequências positivas, relacionadas as lutas e aos direitos trabalhistas conquistados pelos atletas, mas também negativas, como o êxodo dos grandes jogadores do país no período e a ausência do selecionado nacional das principais competições mundiais posteriores. Que os erros e acertos do caso argentino em 1948, sirvam de exemplo para o movimento do Bom Senso Futebol Clube buscar o melhor caminho para o futebol brasileiro na atualidade.
Referência Bibliográficas
AMALFI, Yeso. Yeso Amalfi: o futebolista brasileiro que conquistou o mundo. São Paulo: Editora CLA, 2009.
DI STÉFANO, Alfredo. Gracias, vieja: las memorias del mayor mito del fútbol. Madrid: Aguilar, 2000.
DRUMOND, Maurício. Nações em jogo: esporte e propaganda política em Vargas e Perón. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
GOMES, Eduardo de Souza. El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
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[1] Maiores informações sobre o movimento Bom Senso Futebol Clube, ver o site http://www.bomsensofc.org.br
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[1] Maiores informações sobre o movimento Bom Senso Futebol Clube, ver o site http://www.bomsensofc.org.br
[2] A proposta de adequação do calendário passa, entre outros fatores, pela diminuição do número de partidas para as equipes consideradas de ponta; pelo aumento do número de jogos e campeonatos para as equipes menores, para assim evitar o alto número de desempregos gerados após o término dos campeonatos estaduais; e a não realização de partidas em datas FIFA, de forma que evite a “concorrência” da Seleção Brasileira com os clubes nacionais. Maiores informações, verhttp://www.bomsensofc.org.br/calendrio/
[3] De acordo com a proposta do Bom Senso F. C., “O Fair Play Financeiro é um sistema de controle das finanças que obriga os clubes a gastarem apenas o que arrecadam. O objetivo é simples e visa garantir a sustentabilidade da instituição esportiva e o desenvolvimento saudável do mercado”.
Maiores informações, ver http://www.bomsensofc.org.br/fair-play-financeiro/
Maiores informações, ver http://www.bomsensofc.org.br/fair-play-financeiro/
[5] Entrevista publicada no site http://trivela.uol.com.br/exclusivo-alex-e-a-hora-de-tomar-a-cbf-de-assalto/, em 04 de novembro de 2015.
[6] A última Copa do Mundo antes da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945) ocorreu em 1938 na França, tendo sido a Itália a campeã da competição.
[7] AMALFI, Yeso. Yeso Amalfi: o futebolista brasileiro que conquistou o mundo. São Paulo: Editora CLA, 2009.
[8] Asociatión de Fútbol de Argentina.
[10] Lei que determinava a transferência de um jogador para outro clube somente se esse tivesse o valor de seu passe pago a seu clube de origem.
[11] Ver GOMES, Eduardo de Souza. O futebol vira profissão: tensões e efeitos da profissionalização do futebol no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954). 2016. 147f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. e GOMES, Eduardo de Souza. El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951). Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
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