O Rio de Janeiro
José Trajano, o cucuruto fervente que idealizou e materializou a ESPN Brasil, onde este blog cumpre seu pequeno papel, ofereceu recentemente, na própria TV, em um programa especial sobre memórias olímpicas, a seguinte pensata: "O Rio de Janeiro foi, nos anos 50, o melhor lugar que existia para se viver. E eu gostaria que voltasse a ser um dia".
O Rio de Janeiro dos anos 50 era uma festa. A consagração de um estilo de vida praticado ao ar livre. Uma cidade ajeitada por inúmeros aterros que viabilizaram e embelezaram cenários, o centro político e a capital artística do Brasil, onde tudo efervescia com graça e vulto. Em 1940 o Palácio Laranjeiras, construído pela riquíssima familia Guinle, foi dado ao Estado e virou a residência dos presidentes do país até 1960, quando surgiu o Palácio da Alvorada. Período de poder e liberdade em rara coexistência.
E depois o Rio se fundiu e se fodeu, perdeu o fio da meada e boa parte de seu suingue. Tempos de Ditadura, nunca mais nada foi o mesmo.
A Itália
Eu, quando preciso defender cronologias fáceis para proteger os fatos reais e presumidos dos ataques gratuitos, costumo lembrar que a Itália de 1900 era um lugar muito melhor para se viver que o Brasil. Nada de realmente bom motivava um italiano a deixar o país em 1900 para tentar a vida no Brasil. Bem de vida eles não estavam. A história da imigração quase sempre é uma história de incertezas, rupturas e sofrimento.
Matarazzo tinha dinheiro e paixão. Os italianos comuns da cidade de São Paulo, não. E tinham saudade e medo do futuro. "Italianos fascistas", dizem ainda hoje alguns que por pouco não escondem o decrepto lado xenófobo. Não deve ter sido fácil. Seja como for, esses caras fizeram São Paulo ter um tempero inconfundível no comportamento arraigado, que embutiu nas gerações seguintes nascidas com sobrenome italiano e nacionalidade brasileira um latente fascínio pelo caos - característica comum ao paulistano típico.
Até os anos 40, um time de futebol unia muito destes - mas não só estes - trabalhadores cansados com famílias pela metade e vidas interrompidas. O Palestra Itália devia ser um barato.
O encontro
Entre o fim do Palestra Itália do jeito que o paulistano conheceu e o fim do Rio de Janeiro tal qual o Brasil conhecia, um encontro aconteceu em 1951. Era a hora certa para a melhor ocasião. O Maracanã abria em sonho uma década da qual a cidade nunca se esqueceria e o futebol brasileiro jamais deixaria de agradecer. Que tenhamos perdido a Copa do Mundo de 50, bem, é fato que não altera a revolução que aquele mamute de concreto, projetado para caber um mundo dentro, representou. Que o Palmeiras ainda precisasse de uma bomba atômica reversa que recolocasse tudo de novo em seu lugar, também é fato, e nada mais irônico que representar o Brasil em um jogo de caráter internacional justamente contra um italiano.
Este encontro aconteceu em um mundo sem redes sociais, sem memes, sem o deboche que hoje é doença congênita e epidemia desesperadora. Em um mundo, vale lembrar, começando a tatear o período pós-guerra, que, vejam vocês, se chamava Guerra Mundial embora não envolvesse o mundo todo. Talvez houvesse, na época, algum tolo afirmando que aquela guerra não era "Mundial", era no máximo "Intercontinental". Questão de lógica tola.
O relato
Palmeiras e Juventus decidiram uma competição futebolística no Rio de Janeiro em 1951, no Maracanã novinho em folha, e agora, 65 anos depois, em tempos de Lance! com capas "uga uga" de uma ou duas palavras-hashtags, é difícil mesmo entender a missão - que também é do leitor - de separar narrativa de significado na hora de interpretar, não apenas ler, um relato jornalístico que conta para os de hoje um pedaço de um mundo tão distante. Nessa esteira, te coloco a pensar: o que ficará, daqui 65 anos, para os homens e mulheres vivas entenderem e interpretarem o mundo de hoje?
A crônica futebolística quase não existe mais, a reportagem perde espaço entre um passaralho e outro, os números estão no trono empossados pela demanda comercial e as ideias estão controladas pelos assessores e suas entrevistas coletivas bizarras. Daqui 65 anos, o que eu faço para checar se, por exemplo, afinal, a Primeira Liga vencida pelo Fluminense foi mesmo um campeonato nacional? Abro a internet e jogo no google? Google em 2081? A gente faz pior do que apenas enxergar o passado com a régua inexata do presente: a gente tem sérias dificuldades em preparar o presente para que ele seja entendido no futuro.
A Copa Rio de 1951 não cabe em nenhuma linguagem contemporânea. Elas são quase matemáticas. São literais. São dependentes de comparações. Possuem 140 caracteres. São feitas para o escracho. São feitas para a distração. O Palmeiras de 1951 é solene, reto, sério. Não há um só retrato de gargalhadas, farra, festa de atletas, não há uma só declaração polêmica, palpitante, controversa, não existem ganchos de carisma ou grandes sacadas, histórias paralelas, nada. Aquele Palmeiras só jogou um campeonato de futebol. O fluxo de comunicação dos anos 2000 não consegue emoldurar esse quadro.
O brinde
No fim das contas a culpa é, em grande parte, sua, amigo e amiga palmeirense. Sua, nossa, que tentamos enfeitar o que já é suficiente. A juventude de hoje é tão apegada ao próprio tempo que se acha no direito de tirar sarro de um fax, e no fundo não estão tirando sarro do Palmeiras, estão tirando sarro é do fax, da vida que não viveram, daquilo que não conseguem entender.
Sobre o título de 1951 eu só penso e falo com a alma boêmia digna de um autêntico carioca dos anos 50. Leve, em paz, generoso e offline. Que os campeões de 51 (e os vice-campeões de 50) perdoem as gerações que vieram depois.
http://espnfc.espn.uol.com.br/palmeiras/o-periquitao/10106-a-vida-que-eles-nao-viveram
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